sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Dura lex, sed lex!

O assunto "praxe" está para mim, em termos de importância e espaço para discussão, mais ou menos, ao nível das touradas: eu tenho uma opinião, admito que cada um tenha a sua, respeito e espero igualmente ver a minha respeitada. E, como em quase tudo na vida, não sou aficionada de radicalismos, pelo que tanto sururu em torno do que considero um não-assunto me anda, no mínimo, a enjoar, sobretudo pela forma enviesada como tem sido abordado.
 
Quando ingressei no Ensino Superior, mais ilusionada (perdoai-me o "espanholismo") do que iludida, Coimbra foi a cidade escolhida. Sabia de antemão que em mais nenhum ponto do país a tradição se vivia como lá. Sim, sonhava com a capa e a batina. Fui praxada, fiz figuras ridículas, e ri. E ri. Ri muito. Quando olho para trás e rememoro esses dias não me lembro de jamais em tempo algum ter sentido medo, ter sido humilhada ou de ter sido sujeita a alguma prática que ofendesse a minha integridade ou tivesse posto em causa a minha saúde física ou mental. Quando muito era eu que dava com eles em doidos! No ano seguinte praxei, confesso que com menos entusiasmo do que aquele com que tinha sido caloira. Desfilei no Cortejo. Despedi-me de Coimbra quando os primeiros raios de sol da madrugada despontavam pondo fim a uma Queima, para mim, inolvidável.
 
Depois ingressei no mundo do trabalho. Fiz parte de equipas de que, malgrado as ovelhas ronhosas do costume, gostei imenso. Fiz amigos para a vida. Fui vítima de uma burla espectacular de tão ínsana que foi. Acabei a trabalhar para um casal que julgava poder viver com a ostentação de Versalhes, tratando a criadagem como se ainda estivéssemos no tempo do senhor Salazar. Andei sempre à beira do limite, prestes a explodir, vivendo numa revolta constante, a suportar humilhações sucessivas, num atropelo constante de direitos laborais e regras básicas de educação. Um dia disse basta. Não me lembro de em muitas ocasiões ter respirado tão profundamente de alívio como nesse dia.
 
Hoje integro um gabinete onde me tratam como uma menina, por ser a mais nova, por serem pessoas extremamente educadas e com tacto, onde me estimam. Não preciso de estar em alerta permanente. Gosto do que faço. E gosto das pessoas que me rodeiam.
 
Se porventura hoje alguma das pessoas com quem convivo, sobretudo a nível profissional, me faltasse ao respeito fosse de que forma fosse, poderia até ser o Primeiro-Ministro em pessoa, não tenho dúvidas de que a mandava bardamerda imediatamente. O dinheiro é importante, a dignidade e a saúde mental são-no muito mais. Onde aprendi isso? Na praxe? Não. Não foi a praxe que me preparou para a vida. O que me vai preparando para a vida são os sucessivos tropeções, as desilusões, as escolhas acertadas, os acontecimentos que deixam calo e que me nos fazem evoluir. Isso também aprendi na praxe. Mas o essencial vinha de trás, de casa; reforcei-o durante; cimentei-o anos depois. A praxe serviu fundamentalmente para revelar aos outros facetas de mim que no dia-a-dia das aulas não conheciam. Mostrou-me outros lados, porventura mais ousados e mais divertidos, de colegas que eram habitualmente compenetrados no quotidiano estudantil. Alguma alminha se extraviou a gatinhar a caminho do Pratas onde nos esperava o tracadinho? Nem pouco mais ou menos. A praxe foi, para mim, uma diversão, um dos aspectos da vida académica, um dos encantos de Coimbra. Mas essa foi a minha experiência. Se me disserem que há doutores que humilham, maltratam e/ou exploram caloiros não desminto. Gente boa e má, gente com princípios e com falta deles, gente de coração gigante e gente mesquinha há-a em todos os grupos, seitas, associações, grémios, bandos, equipas, whatever. Vangloriar-se com a desgraça dos outros, reforçar o ego à custa da ignomínia alheia é uma opção pessoal, é uma questão de falta de carácter transversal na sociedade, longe de ser apanágio de doutorzecos frustrados.
 
Morreram seis pessoas naquela noite, no Meco. Os pais daqueles jovens, tomados por uma dor inexplicável, querem respostas para poderem seguir em frente. O Dux, como qualquer testemunha, tem o dever moral - porque os pais têm esse direito moral também - de prestar declarações e ajudar a apurar a verdade. Mas o "drama de faca e alguidar" termina por aí. Até prova em contrário tratou-se de um acidente. Não é provável que os jovens tenham sido coagidos à força a agir de forma menos responsável. Nunca se saberá com certeza absoluta o que aconteceu naqueles momentos fatais, mas uma coisa é certa: resistir à praxe não nos torna párias aos olhos dos outros. Da mesma forma que aderir não faz de nós carrascos. Como em tudo na vida é-nos dado escolher. Depende da formação pessoal de cada um, das suas convicções, dos seus objectivos, das suas crenças enveredar pelos imensos caminhos com que nos vamos deparando.
O que nos prepara para a vida é uma educação que começa em casa, um entorno familiar que nos transmita valores, que não nos deixe nunca sermos grandes à custa dos outros. Da mesma maneira que durante o Liceu tinha amigos que fumavam, que bebiam, que experimentavam drogas sem nunca aderir a grupinhos por imposição social, aderi, em consciência, à Praxe de Coimbra, sem pressões, sem ir atrás da manada, porque entendi que aquela era mais uma forma de estar com os amigos e de socializar, de viver Coimbra, sem fundamentalismos, de forma saudável.
 
O tratamento que estamos a dar a este assunto - mediatizado à força de falta de notícias que o sejam de verdade - revela, uma vez mais, o material de que somos feito enquanto povo. Não serão tão obtusos os que apontam o dedo sem conhecer a essência da Praxe como aqueles que, fazendo parte dela, a deturpam com práticas violentas e que envergonham o Código? Deixemo-nos de generalizações, deixemos de falar de realidade que desconhecemos. Só há uma maneira de proteger os nossos filhos [e mesmo dotando-os dessas ferramentas há tanta coisa que pode correr mal!]: fortalecendo-lhes o carácter com exemplos, ensinando-lhe o respeito pelo próximo.
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"Liberdade: é essa flor que nunca desespera no jardim da perpétua primavera." *

A última pedalada do ano, no dia 29 do ano velho, levou-me até aqui. Vivi uma Primavera em Dezembro. Lá fora floresciam as primeiras plantas e em mim a esperança renovada de um novo ano, cheio de infinitas oportunidades para me cumprir.
 



* Poema de Miguel Torga