quinta-feira, 29 de outubro de 2015

"morreu-Me"

Caem as primeiras chuvas e a terra, sequiosa, absorve ávida as gotas gordas. O dia amanhece a fumegar: vapores que sobem do chão e que lembram paragens tropicais. É a vida que se renova, o solo em breve atapetado de verde. Cheira a terra molhada e isso sempre me acalma a neura da manhã inteira desperdiçada a tratar das papeladas no Banco. Estou perdida nesta imagem quando Ele se senta ao meu lado na paragem do autocarro. "Doem-me as pernas." Levanto os olhos do chão para o ver e respondo que é bom sinal, é porque ainda as vai usando e há tanta gente que mal se mexe." Atira-me com um: "olhe que também sempre me saiu uma amiga da onça." Pede desculpa pela familiaridade mas já que estamos de conversa... "Morreu-me a minha querida esposa, a minha maior riqueza." Fiquei parada no "morreu-Me", que assim conjugado aumenta logo o amor e amplifica a perda. "Gostava tanto de ir ter com ela!", diz-me, prolongando as palavras, como se fizesse um pedido. "Carrego este castigo, sabe?" "As pernas?", pergunto, e logo me arrependo porque soa a trocista. "Não menina. O arrependimento de ter prolongado a agonia dela. Nove anos a gemer de dores, sem falar. O maldito Alzheimer! Que justiça há neste mundo quando uma médica me diz que não é bruxa para adivinhar o que lhe doía? Claro que todo o esqueleto lhe devia doer, coitadinha. E ela sem poder explicar." Noto-lhe os olhos a humedecerem-se. "Em pleno século XX não serem capazes de mitigar estas dores. Não há direito! E eu devia ter acabado com aquilo. Vou tratar do testamento vital - já ouviu falar disso, a menina? - para quando chegar a minha vez. Não quero que me prolonguem a vida de maneira nenhuma artificial." Não sei que dizer. Balbucio um "entendo" que não quer dizer coisa nenhuma a não ser que o estou a ouvir. Que sei eu desse desvelo contínuo, dessa impotência de nada poder fazer? Por fim, rompo o silêncio a atrevo-me a sugerir que se agarre à vida pelos que gostam dele: tem os filhos e os netos. "Todos com a vida feita. E eu com este peso que carrego." Suspira: "A minha querida esposa!" Cheira-me a velho. Não a velho de idade, mas à vida gasta. Aos fiapos da vida que lhe restam e que resistem à dor e à perda. Toco-lhe na mão e digo-lhe que ainda tem com certeza muito para viver e que me parece muito bem e cheio de saúde. Chega o autocarro. Faço um gesto a indicar que passe primeiro do que eu. "Oh, eu não vou de autocarro. Parei só para descansar das pernas e para falar um bocadinho consigo. Obrigada menina. Deus lhe dê saúde, menina. E estime-a." Sento-me à janela e vejo-o seguir pela rua, devagar. A arrastar as pernas que lhe doem, carregando nos ombros vergados o peso das saudades da mulher. O sol abriu entretanto e o céu é de um azul primaveril. O ciclo continua: é a vida que se renova. Sorrio, presa à enormidade daquele "-Me", que assim pronunciado disse o que ele deixou por dizer sobre esse Amor que lhe era e continua a ser tudo. Afinal não é isso que nos agarra à vida?