À S. que está de coração vazio.
Quando olho
para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo o quão miúda era naqueles
dias. A capa e batina conferiam o ar pomposo e pedante. Por dentro, ainda hoje,
uma menina que se sabe grande mas se sente pequenina, muito mais pequena do que
o seu metro e meio mal medido. Quando olho para trás, hoje, à distância de
tantos anos, percebo que era medo. Sorria, fazia por ter palavras de conforto,
preenchia os espaços vazios com conversas de circunstância, dividia a atenção
pelas camas do lado. Mas era medo o que sentia. Não pena, por elas que se
debatiam com desânimo, numa luta desigual contra o maldito cancro. Era medo.
Medo de que um dia desse de caras com uma delas morta. Pensava muitas vezes
qual seria o dia em que ao chegar teria de lidar com isso. E no fundo, lá no
fundinho, a esperança, nem sempre vã, de que às vezes também ganhamos batalhas a
essa «p#t@ a quem não se pode dar confiança» (como diz o ALA).
Quando olho
para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo que foi raiva o que senti
naquela manhã em que me ligaram. Acordei cedo para fazer a viagem. Depois de
tantos anos chegara o dia de nos despedirmos e aceitara isso como uma
circunstância natural da vida. Da morte, aliás. Mas não estava preparada
coisíssima nenhuma. Não aceitara nada o fim coisíssima nenhuma. E por muitos
anos depois o que antes era medo deu lugar à raiva de não termos tido numa vida
que afinal foi longa – quando comparada com as sentenças que te leram tantas
vezes – tempo para uns minutos finais. E andei ali a mastigar anos a fio –
vestida de negro por fora, ainda mais sombria por dentro – essa raiva e esse
desespero de achar que não tinha feito o suficiente. Saía sempre a pensar que
poderia ter ficado mais tempo, ou ter ido mais cedo, ou não ter falhado nenhuma
visita, ou ter sido mais atenciosa… e no final fiquei a remoer o facto de não
ter podido dizer que embora nasçamos e morramos sozinhos, eu estava ali. Quando
olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo o quão miúda era
naqueles dias. E por muitos anos essa sensação de injustiça não mais me
abandonou. Chateei-me com Deus, com a morte, com a vida, com os médicos,
comigo, contigo, com o mundo.
Entretanto
morreu, inesperadamente, o tio Mateus. E embora não o soubesse então, apesar do
desaparecimento dele me ter de imediato custado muito, hoje sinto-lhe imenso a
falta. É como se avançasse na leitura de um livro e se de repente me lembrasse
de uma frase bonita e a quisesse reler mas as páginas que estão para trás
tivessem sumido e não fosse possível olhar para elas nunca mais. Perdi outras
pessoas. E a Avó adoeceu. No dia em que foi hospitalizada a minha alma desabou.
Percebi a finitude. Tive novamente medo. Os dias (anos, na verdade) que se
seguiram foram de preparação. De aceitação da ordem natural das coisas. De interiorizar o melhor, de aproveitar
ao máximo cada segundo com ela, de a viver. Porque a morte era iminente. E
quando finalmente chegou o dia – não aquele em que morreste Avó, mas aqueloutro
em que me despedi de ti – soube que não mais sorririas para mim e a tua voz
ficou a ecoar-me por dentro. Pensava nisso todos os dias, para te perpetuar em
mim. A recordar cada pequeno pormenor da tua fisionomia, cada gesto peculiar,
cada expressão tão tua. E quando me surpreendo a fazer um esforço para me
recordar do tom exacto com que dizias algumas coisas fico aflita, sabendo que
com o tempo algumas delas se vão diluir até não restarem mais do que fiapos da
tua existência na minha memória, quando também eu já for velhinha e as
recordações me parecerem demasiado distantes para terem um dia sido realidade.
Quando olho
para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo que esta é uma caminhada
que se faz a solo. O nosso crescimento, a aceitação da nossa realidade frágil
não é uma aprendizagem fácil. Leva tempo. Pacificarmo-nos com a morte implica a
certeza de que as pessoas que fazem parte de nós continuarão connosco. Implica
a certeza de que somos mais fortes do que julgamos. Implica a certeza de que
aguentamos sempre mais dor do que a julgávamos suportar. Implica assumir, com o
coração estilhaçado, que a tua Avó, S., não conhecerá os teus filhos, não lhes
acariciará os cabelos como fez contigo quando eras miúda, não lhes dará colo.
Implica aceitar isso, engolindo as lágrimas que te sufocam. Porque chegará um
dia – para mim chegou – em que ao lembrar-me dela, deles, sorrio sozinha e
sinto-me grata por tudo o que me deram e me foram. Pacificarmo-nos com a morte
é bem simples afinal. Cuidamos que sentiremos irremediavelmente a falta dos que
mais amamos e tememos não conseguir sobreviver para lá desse dia. Mas na
verdade quanto mais amamos as nossas pessoas mais elas se gravarão em nós e por
mais anos ficarão connosco.