segunda-feira, 12 de maio de 2014

O dia em que eu fiz as pazes com a morte

À S. que está de coração vazio.


Quando olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo o quão miúda era naqueles dias. A capa e batina conferiam o ar pomposo e pedante. Por dentro, ainda hoje, uma menina que se sabe grande mas se sente pequenina, muito mais pequena do que o seu metro e meio mal medido. Quando olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo que era medo. Sorria, fazia por ter palavras de conforto, preenchia os espaços vazios com conversas de circunstância, dividia a atenção pelas camas do lado. Mas era medo o que sentia. Não pena, por elas que se debatiam com desânimo, numa luta desigual contra o maldito cancro. Era medo. Medo de que um dia desse de caras com uma delas morta. Pensava muitas vezes qual seria o dia em que ao chegar teria de lidar com isso. E no fundo, lá no fundinho, a esperança, nem sempre vã, de que às vezes também ganhamos batalhas a essa «p#t@ a quem não se pode dar confiança» (como diz o ALA).
Quando olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo que foi raiva o que senti naquela manhã em que me ligaram. Acordei cedo para fazer a viagem. Depois de tantos anos chegara o dia de nos despedirmos e aceitara isso como uma circunstância natural da vida. Da morte, aliás. Mas não estava preparada coisíssima nenhuma. Não aceitara nada o fim coisíssima nenhuma. E por muitos anos depois o que antes era medo deu lugar à raiva de não termos tido numa vida que afinal foi longa – quando comparada com as sentenças que te leram tantas vezes – tempo para uns minutos finais. E andei ali a mastigar anos a fio – vestida de negro por fora, ainda mais sombria por dentro – essa raiva e esse desespero de achar que não tinha feito o suficiente. Saía sempre a pensar que poderia ter ficado mais tempo, ou ter ido mais cedo, ou não ter falhado nenhuma visita, ou ter sido mais atenciosa… e no final fiquei a remoer o facto de não ter podido dizer que embora nasçamos e morramos sozinhos, eu estava ali. Quando olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo o quão miúda era naqueles dias. E por muitos anos essa sensação de injustiça não mais me abandonou. Chateei-me com Deus, com a morte, com a vida, com os médicos, comigo, contigo, com o mundo.
Entretanto morreu, inesperadamente, o tio Mateus. E embora não o soubesse então, apesar do desaparecimento dele me ter de imediato custado muito, hoje sinto-lhe imenso a falta. É como se avançasse na leitura de um livro e se de repente me lembrasse de uma frase bonita e a quisesse reler mas as páginas que estão para trás tivessem sumido e não fosse possível olhar para elas nunca mais. Perdi outras pessoas. E a Avó adoeceu. No dia em que foi hospitalizada a minha alma desabou. Percebi a finitude. Tive novamente medo. Os dias (anos, na verdade) que se seguiram foram de preparação. De aceitação da ordem natural das coisas. De interiorizar o melhor, de aproveitar ao máximo cada segundo com ela, de a viver. Porque a morte era iminente. E quando finalmente chegou o dia – não aquele em que morreste Avó, mas aqueloutro em que me despedi de ti – soube que não mais sorririas para mim e a tua voz ficou a ecoar-me por dentro. Pensava nisso todos os dias, para te perpetuar em mim. A recordar cada pequeno pormenor da tua fisionomia, cada gesto peculiar, cada expressão tão tua. E quando me surpreendo a fazer um esforço para me recordar do tom exacto com que dizias algumas coisas fico aflita, sabendo que com o tempo algumas delas se vão diluir até não restarem mais do que fiapos da tua existência na minha memória, quando também eu já for velhinha e as recordações me parecerem demasiado distantes para terem um dia sido realidade.
Quando olho para trás, hoje, à distância de tantos anos, percebo que esta é uma caminhada que se faz a solo. O nosso crescimento, a aceitação da nossa realidade frágil não é uma aprendizagem fácil. Leva tempo. Pacificarmo-nos com a morte implica a certeza de que as pessoas que fazem parte de nós continuarão connosco. Implica a certeza de que somos mais fortes do que julgamos. Implica a certeza de que aguentamos sempre mais dor do que a julgávamos suportar. Implica assumir, com o coração estilhaçado, que a tua Avó, S., não conhecerá os teus filhos, não lhes acariciará os cabelos como fez contigo quando eras miúda, não lhes dará colo. Implica aceitar isso, engolindo as lágrimas que te sufocam. Porque chegará um dia – para mim chegou – em que ao lembrar-me dela, deles, sorrio sozinha e sinto-me grata por tudo o que me deram e me foram. Pacificarmo-nos com a morte é bem simples afinal. Cuidamos que sentiremos irremediavelmente a falta dos que mais amamos e tememos não conseguir sobreviver para lá desse dia. Mas na verdade quanto mais amamos as nossas pessoas mais elas se gravarão em nós e por mais anos ficarão connosco.  

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