segunda-feira, 26 de maio de 2014

O dia em que o M. sonhou por mim.

 
 
 
Eu sou uma "neveraholic" da pior espécie! Tenho uma tendência inata para dizer «Não gosto!, Não me apetece!, Não consigo!» Contrariar essa propensão dá uma trabalheira tremenda, crede-me. Porque embora acabe sempre por alinhar, à primeira olhadela tudo me parece uma canseira! Maneiras que, quando há uns meses, comecei a dar as primeiras voltinhas de bike, as expressões que o desgraçado do companheiro de (des)venturas mais ouvia eram: «Não consigo descer isso!», «Nunca vou conseguir subir aquilo!», «Deus me livre sequer de tentar passar além!». E ele, um Senhor que é um poço de paciência, a insistir, que não, que conseguia, que tentasse e logo se via como corria. E vai daí eu, que também não gosto de fazer as coisas pela metade, descia, subia e passava. Mas como inteligência é coisa que pouco me assiste demorei até entender que sim, que o diacho do homem tinha razão. Deixai-me falar-vos do tal culpado destes incentivos. O M. é um homem como já não se fazem. Um cavalheiro. Boa gente. Só por isso já merece toda a consideração. E depois o M., vistas bem as coisas, é uma das pessoas com um coração mais bondoso e altruísta que conheço. Quem tem uma bicicleta gosta dela como de um animal de estimação, como um filho. Uma bicicleta não se empresta a ninguém a não ser a alguém em quem confiemos cegamente. Ninguém a trata melhor do que nós! O M., sem me conhecer de lado nenhum, sem nunca me ter visto mais gorda (sim F. já fui mais gorda, já todos sabem disso), emprestou-me não uma mas todas as bicicletas dele enquanto eu não tive nenhuma. E foi com elas que o santo homem, embuído de uma infinita paciência, foi insistindo para que eu experimentasse esta descida, aquela subida, aquele drop, aqueloutro single. Finalmente em Janeiro tive a minha própria e começou outro desafio: adaptar-me a um tamanho novo, a um estilo de pedalar diferente. Desanimadinha com as primeiras voltas por ficar a meio de subidas que antes fazia e que agora exigiam um esforço tremendo, segui o conselho dele - sábio como sempre - de trabalhar a cadência. Duas semanas de experiência, a dar umas voltinhas para treinar a tal da cadência, só para tirar as teimas et voilà: eis-me a subir em explosão. Mais uma prova superada. Nada como experimentar para perceber que em calhando até sou capaz. Depois foram as descidas. As pedras já eu as desço tranquilamente, sempre a desfrutar. Mas as descidas inclinadas metem respeito nas entradas. Parece que vamos cair no vazio. Pedi-lhe que fizesse uns trilhos específicos comigo. Mais uma vez foi inexcedível em companheirismo e em aconselhamento. Desbloqueei esse medo com duas ou três passagens por uma certa descida e pronto. Seguiram-me as pontes e o medo dos trilhos estreitos. Depois de ontem percebo agora que o problema que se segue são as curvas. É a próxima meta: trabalhar as curvas para não sair disparada nas descidas. Tudo isto para dizer o quê? Para explicar que se fosse guiar-me apenas pela minha cabeça provavelmente dava umas voltas pelo bairro e ficava-me por aí porque nunca me apetece, nunca quero, nunca vou conseguir. Mas depois madrugo, "forço-me" a ir e o M. "obriga-me" a fazer o resto. Ontem saí das últimas posições da partida de uma prova. Gastei inicialmente demasiada energia a ultrapassar outros participantes e a ganhar lugares. Tinha metido na cabeça que não seria a última. Só não queria ser a última. Portanto lá fui eu, a tentar fazer o melhor que conseguisse. Mas não tenho a experiência necessária: não sei lidar com multidões, não sei ainda gerir a alimentação e a hidratação, não pressiono quem vai à minha frente, não tenho ambição suficiente para me dar aquele empurrão final. Só eu e quem tem vertigens sabe o esforço mental que foi passar as pontes todas sem me dar um fanico. Mas fi-las. E as descidas íngremes também. Não só porque eu achasse sempre que ia conseguir, mas também porque o M. ia ali mesmo ao lado ou atrás sempre a deitar aquele olhar como que a dizer: «Atreve-te sequer a pensar que não consegues e vais ver o que te faço!». No final, ainda sem saber a classificação, estava feliz por ter noção que tinha feito o melhor que consigo e que me divertira muito. Em conversa com amigos eu disse que o mérito de ter sequer terminado era dele porque se tiver um problema mecânico conto com a ajuda dele, porque em alguns estradões me deu roda, porque é outra fruta ter quem nos dê água ou reforços quando os nossos acabam. E isso, parecendo que não, são 50% de uma prova, porque a mente conta tanto ou mais do que o corpo. Ele respondeu que não, que as pernas foram as minhas, que quem desceu fui eu, que quem subiu fui eu. Sim, meu caro, fui, de facto. Mas quem há uns meses esperou por mim quando eu ainda não andava um caracol (ainda não ando, mas pronto) foste tu; quem me obrigou a experimentar quando eu teimava em passar ao lado das coisas  foste tu; quem continuava a puxar quando eu estava KO e prestes a deitar-me a descansar na valeta eras tu. Ontem fui eu que pedalei e dei o meu melhor é verdade. Mas quem acreditou sempre, sobretudo quando eu duvido, foste e és tu e por isso a classificação de ontem (que vale o que vale!) é tua também. Obrigada M. Nunca mais vou dizer nunca!


* Podemos transpor isto para todas as esferas da vida, com outras pessoas e noutras circunstâncias. O essencial mantém-se: a força que nos vem do poder de acreditar é imensa. E nem sempre a fonte somos nós, mas sim os outros, os que sonham por nós os sonhos que achamos impossíveis de alcançar.
 

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