quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Bem-vindo seja quem vem por bem.

Assim que transpomos a porta, ali onde o chão de cimento termina, a madeira range sob os nossos pés. No Verão sentas-te junto à janela para aproveitar a luz natural enquanto cerzes umas meias ou pregas um botão. Já vês mal e, apesar de não sabemos como, ainda és tu que enfias a agulha. Atrapalham-te os dedos mais que os olhos. Os ossos a deformarem-se. Se for Inverno vou encontrar-te sentada à lareira, senhora e dona do lume, das panelas e da vida da cozinha. Ao destapá-las há sempre alguma coisa de que gostamos: batatas de caldeirada com bacalhau, fígado guisado, arroz de feijão. No armário atrás de ti sei que nunca se acabam as batatas panadas em ovo e salsa. E papas de arolo sobre as quais eu gostava de espalhar uma camada de açúcar. Em minha casa também há batatas cozidas. E azeite. E azeitonas. Então porque é que não sabem ao que sabiam as que tu torravas e regavas com um fio de azeite da almotolia? No Verão quente da minha infância, de um calor que já não há, refrescavas-nos as tardes com Brasa muito doce. Ou groselha caseira, espremida das bagas que apanhávamos nas Barrocas. Vejo-te sentada sobre as pernas ao fundo das escadas, quase na rua, de ciranda a baloiçar-te nos dedos enquanto peneiras o grão. O pó das vagens empregna-se-te na pele, acentua-te a tosse seca. Pareces-me mais velha e pequenina quando te lembro assim. Quando as tuas forças já eram apenas uma réstia e continuavas a viver apenas movida a Amor. Um corpo frágil a albergar um coração tão grande. Ontem, por ironias do destino, havia mais um lugar à mesa porque alguém se enganou a contar os comensais. E também no sofá onde te aninhávamos à lareira. Não nos nossos corações onde o teu lugar jamais será ocupado. Ontem fizeste-me uma falta terrível. Tu que entendias tão bem as minhas fúrias e os meus silêncios. Haverias de me chamar baixo e perguntar o que tinha. E haverias de ficar, como eu, de olhos rasos. Temias a mudança, como eu, mas nem por isso deixaste alguma vez de nos empurrar para fora do ninho. Hoje, num dia que pode ser o primeiro de tantos de uma outra vida, olha por nós Avó. 

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