Sou assumidamente nataleira. Gosto da ceia, das reuniões de família, das luzinhas, das decorações, das musiquetas. Oh, o que eu gosto das musiquetas. Um mês antes já eu ando a trautear músicas de Natal, tornando-me (ainda mais) insuportável para quem comigo convive. Gosto do Natal. Foi durante anos, aliás, a minha quadra favorita. Tendo dito isto, assumo que na minha casa não há um único indício da época festiva que se avizinha. Nem árvore, nem presépio, nem luzes, nem coroas. Nada. Entretenho-me muitas vezes a namorar as montras, a magicar na compra deste e daquele adorno. Volto sempre para casa de mãos vazias. Ainda não é a hora.
Desde que me conheço por gente em casa havia sempre presépio. E árvore. Verdadeira. Um pinheiro verdadeiro. O meu preferido era o de casa da Avó, com pinhas e Pais-Natais de chocolate. Que me perdoe a tia T., que sempre prezou pelo aprimorado das suas decorações, mas o da Avó era o da Avó. Aquela simplicidade deixou saudades. Tal como a dos presépios, que até banda filarmónica tinham!
Não me recordo - era o que mais me faltava, também! - de todos os presépios, nem de todos os Natais. Vagamente, que seja, consigo rememorar bastantes. Lembro-me de um em particular. Do último presépio que fiz. Desde então nunca mais foi a hora.
O pai tem-se por habilidoso. Que o é! E quando mete uma ideia na cabeça põe mãos à obra. Eu e ele fazíamos o presépio no jardim. A gruta onde o Menino haveria de nascer, com um empedrado cuidado. O entorno campestre, com o musgo, as silvas. Animais espalhados por aqui e por ali. Lembro-me particularmente da escada minúscula que fez com pauzinhos para as galinhas se empoleirarem no andar cimeiro do estábulo. Nunca se ouviu dizer que a Sagrada Família tenha ceado canja ou ovos estrelados, mas no nosso presépio havia galinhas. Um galo madrugador, que fosse!
A essa hora, a uns kms de nós, um choque frontal entre dois veículos mudava para sempre a vida de um grupo de pessoas, entre as quais, muito indiretamente nos viemos a incluir. Uma cara desfeita, uma perna amputada, e outros tantos efeitos colaterais que só viemos a sentir meses depois.
A essa hora tocou o telefone. O presépio ficou como estava. A meio caminho entre a obra-prima (não sei se já disse que o pai é habilidoso) e um simples amontoado de pedras e de verduras. Não me lembro de como foi esse Natal. Não tenho ideia sequer. Eu, que sei de cor a página, a linha, onde li determinada frase, tenho esta tendência - alguns dirão mecanismo de defesa - de esquecer determinados episódios. Arquivado nalguma gaveta da memória está esse Natal. Lembro-me sim do telefonema. Como para sempre me hei-de lembrar daquele outro, ao início da manhã, que me arrancou o chão dos pés e me deixou por muitos anos numa luta interna permamente.
Ouvi dizer a alguém que na sequência de episódios dramáticos, daqueles que exigem que congreguemos todas as forças e energias que nem sabemos ter, o nosso corpo, pelas reacções hormonais e outras desencadeadas pelos picos de stress, desenvolve determinadas patologias. Meses depois, passadas as agruras iniciais do rescaldo do acidente, queixaste-te de uma terrível dor de cabeça. De uma pontada. Pelos antecedentes familiares, pela carga genética que todos transportastes, sabias sem que precisassem de to confirmar que era esse o princípio do fim. E foi. Carregaste durante alguns meses, estoicamente, às costas o peso de toda a tragédia. Foste o pilar inabalável da família. Começou então o teu calvário particular, a vida que me dizias vezes sem conta "não ser vida".
Olho para as árvores bonitinhas, engalanadas com bolas e fitas, nas montras da cidade. Já por várias vezes estive tentada a comprá-las. Mas volto sempre para casa de mãos vazias. Ainda não é a hora. Ainda não me apetece despedir de ti. Ainda não é este ano que te vou arquivar nalguma gaveta da memória. Já apaguei o número do telemóvel do meu cartão. Um passo de cada vez. Para o ano. Para o ano eu e o pai fazemos um presépio no jardim. Afinal de contas eu adoro o Natal. Só não me apetece estar a construir memórias assentes em pilares de outras tão tristes. Quando o souber como o fazer sem que me doa haveremos de fazer o presépio mais lindo da aldeia.
O pai tem-se por habilidoso. Que o é! E quando mete uma ideia na cabeça põe mãos à obra. Eu e ele fazíamos o presépio no jardim. A gruta onde o Menino haveria de nascer, com um empedrado cuidado. O entorno campestre, com o musgo, as silvas. Animais espalhados por aqui e por ali. Lembro-me particularmente da escada minúscula que fez com pauzinhos para as galinhas se empoleirarem no andar cimeiro do estábulo. Nunca se ouviu dizer que a Sagrada Família tenha ceado canja ou ovos estrelados, mas no nosso presépio havia galinhas. Um galo madrugador, que fosse!
A essa hora, a uns kms de nós, um choque frontal entre dois veículos mudava para sempre a vida de um grupo de pessoas, entre as quais, muito indiretamente nos viemos a incluir. Uma cara desfeita, uma perna amputada, e outros tantos efeitos colaterais que só viemos a sentir meses depois.
A essa hora tocou o telefone. O presépio ficou como estava. A meio caminho entre a obra-prima (não sei se já disse que o pai é habilidoso) e um simples amontoado de pedras e de verduras. Não me lembro de como foi esse Natal. Não tenho ideia sequer. Eu, que sei de cor a página, a linha, onde li determinada frase, tenho esta tendência - alguns dirão mecanismo de defesa - de esquecer determinados episódios. Arquivado nalguma gaveta da memória está esse Natal. Lembro-me sim do telefonema. Como para sempre me hei-de lembrar daquele outro, ao início da manhã, que me arrancou o chão dos pés e me deixou por muitos anos numa luta interna permamente.
Ouvi dizer a alguém que na sequência de episódios dramáticos, daqueles que exigem que congreguemos todas as forças e energias que nem sabemos ter, o nosso corpo, pelas reacções hormonais e outras desencadeadas pelos picos de stress, desenvolve determinadas patologias. Meses depois, passadas as agruras iniciais do rescaldo do acidente, queixaste-te de uma terrível dor de cabeça. De uma pontada. Pelos antecedentes familiares, pela carga genética que todos transportastes, sabias sem que precisassem de to confirmar que era esse o princípio do fim. E foi. Carregaste durante alguns meses, estoicamente, às costas o peso de toda a tragédia. Foste o pilar inabalável da família. Começou então o teu calvário particular, a vida que me dizias vezes sem conta "não ser vida".
Olho para as árvores bonitinhas, engalanadas com bolas e fitas, nas montras da cidade. Já por várias vezes estive tentada a comprá-las. Mas volto sempre para casa de mãos vazias. Ainda não é a hora. Ainda não me apetece despedir de ti. Ainda não é este ano que te vou arquivar nalguma gaveta da memória. Já apaguei o número do telemóvel do meu cartão. Um passo de cada vez. Para o ano. Para o ano eu e o pai fazemos um presépio no jardim. Afinal de contas eu adoro o Natal. Só não me apetece estar a construir memórias assentes em pilares de outras tão tristes. Quando o souber como o fazer sem que me doa haveremos de fazer o presépio mais lindo da aldeia.
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