segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Eu ainda sou do tempo em que...

Um dia destes, sentada na paragem de autocarro, à espera, reparo num dos carros parados na fila de trânsito. Nos encostos da cabeça dos bancos dianteiros estão presos uns elásticos e umas protecções que, sei, servem para encaixar iPads e afins. A primeira ideia que me vem à cabeça é o enjoada que eu, florzinha de estufa, iria ficar, a ver um filme em andamento. Depois, mais a sério, pensei na alienação que isso constitui. Pais à frente, rádio ligado, crianças atrás, fones nos ouvidos, filme no iPad, zero diálogo... [Generalizo, bem sei!]

Lembro-me de fazer viagens inteiras a ler, com a mana a desassossegar-me - prática ainda hoje muito do seu agrado. Lembro-me de fazer viagens inteiras a fingir que éramos locutoras de uma estação de rádio, quando íamos com os tios a Fátima e os kms demoravam mais do que hoje a percorrer, em estradas que pareciam intermináveis. Lembro-me de fazer viagens inteiras com o A. a perguntar "O que é aquilo?", "Para que serve aquilo?", "Porquê, porquê?, com a curiosidade natural dos miúdos que descobrem o mundo e questionam tudo. Lembro-me de fazer viagens inteiras com os primos A. e R. a jogar ao "Quem quer ser Milionário?", a dizer as capitais do mundo inteiro, a discutir geografia à mistura com futebol e cinema. Ainda sou do tempo em que os (meus) pais me ouviam mais e (me) tentavam calar menos para não incomodar, em que me davam livros para me distrair e de caminho me cultivar, em vez de me espetarem um tablet na mão para me sossegarem. Sobre isso, sobre essa emergência das novas tecnologia nas novas vidas desde tenra idade, nomeadamente no ensino, li um destes dias, num blogue, entre outras considerações, as seguintes afirmações do filósofo Alain Finkielkraut:
«Por que razão se deseja suprimir o método clássico, em que o mestre fala? Porque há smartphones? Não precisam de aprender porque têm todo o conhecimento ao alcance da mão? De modo nenhum, pois se não fizerem esforço para ouvir e aprender nada sabem. Não vejo porque razão devemos adaptar o ensino às novas tecnologias. Bem ao contrário, as novas tecnologias obrigam-nos a manter o ensino como sempre foi. Li há pouco que os dirigentes de grandes empresas tecnológicas como Yahoo e Facebook matriculam os seus filhos em escolas totalmente isoladas (da modernidade), sem computadores. Com quadros negros, giz e livros, estantes cheias de livros que se podem manusear. Esses já compreenderam
 
Cada um educará os seus petizes como bem entender e eu não tenho nada a ver com isso, obviamente. Mas graças a Deus eu ainda sou do tempo em que se jogava à macaca na rua, em que a TV era para ver em casa e com horas marcadas, em que a primeira coisa que fazia ao pegar num livro era deliciar-me com o seu incomparável cheiro, em que podia sujar as mãos de terra, em que esfolava os joelhos por cair de bicicleta no monte (isso ainda hoje me acontece), em que podia fazer viagens inteiras a falar (e Deus sabe como eu consigo falar sem parar) em vez de estar agarrada a um zingarelho eletrónico. Para isso bem me basta agora ter crescido e não me livrar de sair à rua sem duas ou três coisas destas atrás de mim.

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