domingo, 28 de julho de 2013

Trinta e um anos de ti, Avó!

Eu bem sei que agora estás num sítio em que te é dado saber tudo, mas vou explicar-te, ainda assim, como é que isto se processa em mim. Sabes, não me morreste na semana passada. Na semana passada foi apenas o teu coração que cedeu, finalmente, e o teu corpo deixou de ser também. Mas tu Avó começaste a morrer-me muito antes. Há um ano, para ser franca. Quando tive de te trazer ao colo, quando te tirei do Hospital em braços porque queria que tivesses um tratamento decente e que, se fosse o caso, tivesses a oportunidade de uma morte digna, em casa, connosco. Comecei a despedir-me de ti nesse dia e nos que se seguiram, quando tu quiseste tratar de assuntos pendentes, quando ambas entendemos que o teu tempo estava a chegar ao fim. Resististe muito para além do tempo que imaginámos que o teu corpo frágil te deixasse continuar connosco. Mas de lá para cá a tua vida, as nossas também, foram uma luta: contra o tempo, contra a doença que te corroeu por dentro, contra a dor de saber que a cada dia te aproximavas mais do derradeiro dia. Por isso, por ter começado a despedir-me de ti há tanto tempo, por te ter chorado tanto e tantas vezes, na semana passada não fui capaz de ficar triste, daquela tristeza que me sufoca o peito e que me nubla os dias, daquela dor que parece não me deixar continuar. Agarrei-me às tuas memórias, ao que me deixaste de bom. E agarrei-me ao D. Não só por altruísmo (que aliás, herdei de ti), acredita. Por medo. Deu-me um jeitão ter alguém em quem me concentrar em vez de estar para ali a pensar que eras tu enfiada naquele caixão. Não me apetecia nada ter de encarar a verdade de seres tu enfiada naquele caixão. O D., tão frágil, ameninado, a chorar-te como uma criança de cinco anos, perdido. Mas tu sabes, garanti-te e vamos cumprir, que ele fica bem connosco e acho que, em certa medida, isso amenizou a tua partida. Sossegaste, enfim, sabendo-o entregue, tu que foste acima de tudo mãe. Em pleno. Missão cumprida.

Acontece que - e eu conheço-me bem - um dia destes, vou sossegadinha na minha vida, rua afora, e zimbas, cruzo-me com alguém com o teu andar, oiço alguma expressão que só tu usavas, lembro-me de ti do nada e aí é que elas vãos ser. Ou então não. Em calhando esta calma que sinto é mesmo real, despedi-me mesmo de ti, interiorizei a tua partida e vou conseguindo gerir as saudades à medida que o tempo for passando. Indiscutível é este vazio, esta sensação de pequenez que a tua perda me causa. Porque o meu mundo que era tão pequenino e insignificante ficou incomensuravelmente mais pobre com a tua partida e do teu coração grande e bom. Eras a melhor pessoa que me foi dado conhecer.

Lembras-te de me dizeres que te dei um desgosto terrível quando te chamei "Avó"? Tu, ainda de costas direitas, nós dos dedos ainda não deformados, a achares-te nova de mais para que eu, meio palmo de gente, te chamasse "Avó". Ficaste danada, como gostavas de dizer de alguma coisa que te irritava. Lembro-me dessa versão de ti Avó: não nova, porque trajavas preto pelo Avô e o preto entristece e aumenta anos. Mas menos velhinha. Cheia de genica, ocupada a gerir uma casa. O gosto pelo asseio, a roupa ensaboada no tanque gelado, as receitas que só tu sabias confeccionar, as mesas fartas, como sempre foi teu apanágio; legado esse que, aliás, deixaste às tuas filhas, excessivas em desvelo quando que se trata de receber alguém. E, acima de tudo, esse teu respeito pela Natureza, tu que eras, como o Eça disse de Afonso da Maia, «das que não pisam um formigueiro e se compadecem da sede de uma planta.»: não me lembro de jamais te teres sentado à mesa para tomar uma refeição sem te certificares primeiro que todos os animais já tinham as suas gamelas cheias. Depois o cabelo começou a ficar mais e mais grisalho, começaste a andar com as costas curvadas, as mãos a deformarem-se e tu a ficares danada porque eras vaidosa e, embora não o tenhas nunca confessado, creio que essa coisa de envelhecer não era do teu agrado. Não sabias tu que, aos nossos olhos, nunca estiveste mais bonita? O teu olhar ternurento tornou-se ainda mais macio - se possível for - com a idade. As lágrimas fáceis, sempre prontas a saltarem-te dos olhos quando te despedias de nós - o teu grande orgulho, a caterva de netos -, tu que levaste tempo a aceitar que eu, a primogénita, te chamasse "Avó".

Cumpriste até ao último suspiro, no tempo que te foi dado viver, a tua missão: enquanto mulher, enquanto esposa, enquanto mãe. Tocaste a vida de todos os que cruzaram o teu caminho, foste amada por todos os que tivemos a bênção de pertencer à família que criaste e que girava em torno de ti, amaste até ao fim a todos com uma entrega única. Foi uma vida longa, sofrida, dura. Mas feliz. Pensava nisso quando passei lá em casa a apanhar os teus brincos que, por vontade tua, agora são meus. Numa azáfama, a mãe e as tias a arrumarem tudo, feitas gralhas, espaventosas que só elas. E dei por mim a sorrir, a ver nelas a tua pressa, a tua aflição para fazer tudo atempadamente, a preocuparem-se umas com as outras e a esquecerem-se de si mesmas. Não poderias ter deixado melhor legado, Avó, do que aquele que deixaste. E se não fizeste melhor certamente foi por não conseguires ou não saberes como.

Hoje fazes anos. Noventa longos anos que não chegaste a celebrar connosco e que nos parecem insuficientes. Parabéns a mim por trinta e um anos de vida contigo, Avó!