quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O Tio Mateus.

A neura que me causava, senhores!, eu a querer ver TV e ele a ressonar, tipo caterpillar em trabalhos de desaterro. A fingir um tropeção lá lhe batíamos no ombro. Outras vezes, brincadeira de meninos, atirava-lhe com o chapéu. Acordava. Era ainda pior! As perguntas: Quem é este que está na televisão?, O que é aquilo que acabam de mostrar? Eu a atirar olhares que eram dardos certeiros aos meus pais que nada faziam para aliviar o meu sofrimento. Depois aquela mania de se sentar mesmo em cima da lareira, privando-nos parcialmente do calorzinho que emanava das chamas e ainda perguntando porque tínhamos nós calor se ele estava tão quentinho. E, às duas por três, aí o tínhamos, novamente a ressonar. Quem se não o Tio Mateus? Com o tempo amadurecemos ambos. Ele a caminho do "outono do patriarca" (como no livro do Márquez), eu a caminho da Primavera florida da juventude. Aprendi a desfrutar das conversas, a gostar da companhia, a achar graça às perguntas de uma pessoa com parca instrução. Contou-me que um dia, cansado de andar de mota para aqui e para ali «a fazer negócio», decidiu que estava na hora de tirar a carta de carro. Do dizer ao fazer foi um tirinho e mal se deu conta estava de abalada para Lisboa. A capital deslumbrou-o com o fervilhar de vida nas ruas, com os carros nas avenidas, com as moças bem vestidas e os senhores arranjados com quem se cruzou. Teve a primeira aula. Regressou a casa no dia seguinte. «Que a confusão era muita, que era só carros a cruzar de um lado e de outro, que não se podia dormir na Pensão com tanto carro toda a noite a fazer barulho nas ruas...» Imagino o bulício que deveria ser Lisboa nos anos quarenta. Uma Nova Iorque, pela descrição! Suponho que ter tido um acidente no primeiro dia de instrução nada tenha a ver com o facto de ter antecipado o regresso. No dia em que me contou isso, nos dias que se seguiram e me relatou tantos outros episódios que me arrancaram sorrisos e até gargalhadas, creio que entendi finalmente que as pessoas, todas as pessoas, têm em si riquezas imensas, histórias várias, sentimentos, tudo partilhável. E percebi que a impaciência que me causava aquela presença, outrora imposta e agora desejada, se justificava pela minha meninice. Da mesma forma que, suponho, muitas vezes o devo ter irritado, incomodado com as minhas brincadeiras de miúda.
 
Era um homem forte, de aspecto rude, dos que a gente não vê pisar a soleira da Igreja mas de quem intui que em privado vai acertando as suas contas com Deus. Com um coração bom que deixava entrever de quando em vez, em raras ocasiões. Sei, pelo meu pai e tios, que era na casa dele que encontravam sempre a gaveta do pão cheia de fatias à espera dos miúdos esganados de fome, que pela Páscoa lá lhes tinha umas botas novas e pelo Natal as laranjas costumeiras. Dele contava-me o pai que sempre fora brioso, que gostava de andar arranjado, de usar fato em ocasiões especiais. Anos mais tarde, quando doente, o pai fazia questão de o escanhoar, como se ter a barba feita e apresentar-se aprumado lhe conferisse mais dignidade na doença. Gostava da mãe como de uma filha que nunca teve e de mim e da mana como se netas fôssemos. Quando estive na Faculdade, a cada abalada despedia-se em tom despachado, como quem não dá confiança. Mas não arredava pé lá de casa enquanto a mãe não lhe dissesse que já tínhamos chegado a casa e que a viagem correra bem.
 
Morreu. Inesperadamente. Os sobrinhos levaram o caixão em ombros e quando o desceram à terra creio que vi o meu pai chorar pela primeira vez em público, dizendo ao meu tio: «Era como o meu pai». E eu chorei também porque percebi o quanto era querido por alguns de nós, como se parecia impor nas nossas vidas quando afinal esteve sempre naturalmente lá. As primeiras memórias que tenho de mim, de todos é com ele também, ainda na cozinha de cima, sentado em frente à TV, com aquele grosso casaco que me lembro de lhe ter conhecido toda a vida a cobrir-lhe os ombros e... a ressonar. Que nervos me causava então, interrompendo com aquela chinfrineira a novela das nove. Como poderia eu saber que nunca comprou uma televisão para a casa dele porque essa era a forma de estar mais vezes connosco, a sua família, de tomar conta de nós, sempre vigilante, sempre atento, no seu jeito de ser curioso; que essa era a forma de estar connosco, que éramos mais jovens e tínhamos coisas para lhe ensinar e com quem podia rememorar carolices dos seus tempos de juventude?
Há-de estar a fazer anos que nos deixou. Quando for a casa eu e o pai já combinámos ir tratar-lhe da sepultura. Não faz sentido que um homem brioso como o senhor esteja lá naquele aparato, desarranjado. Saiba que me causou vários ataques nervosos, mas sempre que, como hoje, me lembro de si, - e olhe que são muitas as vezes - tenho imensas saudades suas, ti'Mateus. E até de tudo o que não teve tempo de me contar.

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